MAL ENCARNADO - Uma conversa saudável.

MAL ENCARNADO - Uma conversa saudável.


ROGER

Último dia, você parece meio tenso.

GERALDO

Pois é.

ROGER

E o que vai fazer agora?

GERALDO

Terminar meu turno.

ROGER

Digo, durante sua aposentadoria.

GERALDO

O mesmo que eu sempre faço quando eu chego do trabalho, só que durante mais tempo.

ROGER

Uau quanta emoção, cuidado pra não infartar por conta da adrenalina.

GERALDO

Ninguém infarta por causa da adrenalina, ela faz o sangue circular mais rápido então os vasos se contraem ficando mais finos, se o sujeito tiver alguma artéria entupida, o sangue acaba não chegando ao coração ocasionando o infarto.

ROGER

Valeu pela aula.

GERALDO

O problema com a sua geração é que vocês não se importam em saber de nada, apenas repetem coisas que acham fazer sentido, e quando alguém demonstra entender de determinado assunto, a insegurança de vocês berra alto em forma de sarcasmo e ironia.

ROGER

Eu só queria puxar assunto, ter uma conversa saudável no nosso último dia juntos.

GERALDO

Conversa saudável? Hum.

ROGER

Estamos juntos há 6 meses, nunca tivemos uma conversa, isso é tóxico.

GERALDO

Eu trabalhei com o Lourenço por 15 anos, ele nunca reclamou do silêncio, talvez o tóxico seja você. Esse termo é uma bosta, o que aconteceu com o "chato de merda"?

ROGER

Virou cringe.

GERALDO

Se usar outro termo assim tu vai levar um tiro.

ROGER

Como Lourenço aguentou você por 15 anos?

GERALDO

Ele poderia ter ficado vivo por mais 6 meses, aí eu poderia estar desfrutando de um silêncio saudável, ao invés de uma conversa tóxica. Viu? Agora virei um merdinha que usa termos populares, posso fazer um twitter? Ser membro vip desta geração egocêntrica? Quantos "likes" ganho por isso?

ROGER

Eu desisto!

GERALDO

Obrigado.


O silêncio finalmente se estabeleceu, Geraldo estica um sorriso.


ROGER

Só acho que eu poderia aprender alguma coisa com você, com suas histórias, coisas que já passou no trabalho.

GERALDO

Achei que tinha desistido?

ROGER

Droga Geraldo!

GERALDO

Quer escutar uma história, garoto?

ROGER

Vai contar ou é uma pergunta retórica?

GERALDO

É algo que me assombra, não é o tipo de coisa que você conta em um papo durante uma tarde de trabalho, mas vamos lá…

Ao contar a história Geraldo mergulha em um flashback que o leva a uma época onde ele era o jovem pertencente a uma geração egocêntrica.

Era meu primeiro ano na corporação, eu ainda não tinha participado da ação, apenas cuidei de alguns pequenos delitos de trânsito. No fim de uma noite, estávamos fazendo uma ronda rotineira, eu e meu primeiro parceiro Cláudio, sujeito magrelo metido a esperto, sempre me perguntei como aquele tripinha tinha passado na prova física, com aquelas duas varetinhas que ele usava como braços, eu achava meio que impossível.


GERALDO

Quase dois meses, nenhuma adrenalina, não precisa ser o suficiente pra infartar, apenas o suficiente para eu não dormir no volante.

CLÁUDIO

A adrenalina não gera infarto, ela faz o sangue circular mais rápido então os vasos se contraem ficando mais finos...


Magrelo espertão, nunca esqueci das bobagem que ele tagarelava. E foi em uma noite comum, em um turno comum em uma rua comum que um carro passou por nós com os faróis desligados, nunca me esqueci do modelo daquele carro, era um Gol quadrado cinza, com uma mancha de ferrugem enorme em toda lateral esquerda. Acelerei, liguei a sirene para que o veículo encostasse, o sujeito acelerou e eu me animei, finalmente eu teria um pouco de ação. O carro se distanciou então uma mulher passou correndo no meio da rua, Cláudio deu um berro, e eu joguei todo o volante para a esquerda, sentimentos uma forte pancada, o carro saiu da estrada e batemos em uma árvore, senti um suspiro no pescoço e escutei um cochicho, não compreendi o que escutei, mas parecia um voz de criança. Saí do carro cambaleando, e o carro que perseguimos havia sumido no horizonte da estrada. Um homem velho me ajudou a levantar, me agradecendo diversas vezes.


SILVIO

Obrigado, muito obrigado, ele finalmente sumiu...


Ele continuou me agradecendo, olhei para frente vi uma mulher chorando segurando o corpo de uma criança. Naquele instante saquei no que a viatura tinha batido antes de darmos de frente com a árvore, meu coração disparou, finalmente tive a adrenalina que eu queria, mas não imaginei que seria de um jeito tão terrível.


ROGER

O garotinho morreu?

GERALDO

Morreu, ele tinha 8 anos.

ROGER

Nossa, eu nem sei o que dizer.

GERALDO

Não precisa dizer nada, não conclui, esse é só o começo da história.


Outras viaturas chegaram, uma ambulância, a perícia e fomos levados para delegacia para prestar depoimento. Depois de preencher uma puta papelada, nos liberaram. Ainda na delegacia conversamos com alguns colegas de serviço que nos deram mais detalhes do caso. Lembra o sujeito que me agradeceu? Era pai do garoto, o velho se chamava Silvio, ele perseguia a esposa e o filho porque queria matar o garoto.


ROGER

Por que?

GERALDO

Você não queria ouvir uma história? Então não interrompa com perguntas.

ROGER

Certo.


A esposa denunciou o velho e encontraram um cemitério clandestino no seu quintal, com corpo de umas 5 crianças e umas 4 mulheres ou mais, acharam até 3 corpos dentro das paredes da casa, não me recordo bem dos detalhes, mas eram uns papos bizarras deste tipo. Mas o caso é que o velho era a bosta de um doente da cabeça, falaram que há 37 anos atrás seu filho de 8 anos havia matado sua esposa e seus outros dois filhos, um rapaz de 12 anos e uma menina de 4 anos, o pequeno assassino foi levado para delegacia e se matou na sala do delegado com uma navalha que tinha escondido dentro do próprio coro.


GERALDO

Doidera né?

ROGER

Demais.

GERALDO

Eu fico imaginando a cara do delegado, entrando em sua sala e vendo aquela cena depois de uma história bizarra desta. Bom, a história ainda não acabou…


O tal Sílvio na época parecia estar passando por uns traumas depois do ocorrido, dizia que o seu filho assassino era a reencarnação de um jovem garoto que ele havia atropelado. Ele era piloto de ônibus escolar, um dia ele passou com o ônibus em cima de uma das crianças da escola, foi um acidente terrível, acabou perdendo o emprego, entrou em depressão, porém foi absolvido, já que não tinha intenção de matar, era réu primário e todas essas outras merdas que ajudam os vagabundos a ficarem fora da cadeia.


GERALDO

Vou para a história pra abrir um parêntese, chuta aí quantos anos tinha o garoto que o maluco atropelou?

ROGER

8 anos, certo?

GERALDO

Exato rapaz do Tweeter, o garoto tinha 8 anos…


E encontraram facas e outros objetos com sangue na mochila do desgraçadinho, o que deixou a polícia intrigada, e quando foram dar a triste notícia da morte do filho para os pais acharam o corpo da mãe carbonizado dentro do forno do fogão e o pai estava na sala amarrado, com o rosto desfigurado e os intestinos para fora, sem os dedos de uma das mãos e com um dos seus braço aberto como se alguém estivesse o dissecando, mas o cara ainda tava vivo. Um dos policiais que estava presente disse que a primeira coisa que o pai disse foi: "matem o garoto ele não é o meu filho". Depois ele começou a balbuciar várias merdas sem sentido até que chegou a falecer antes mesmo da ambulância chegar no local. Sílvio jurava que seu filho assassino era-


ROGER

A reencarnação daquele garoto que torturou e matou os pais.

GERALDO

Quer contar a história?

ROGER

E que ouvi coisas sobre esse caso, não sabia que você estava envolvido, e tipo uma lenda urbana.

GERALDO

Posso continuar?

ROGER

Por favor.


Depois de um tempo Sílvio parou com os papos delirantes sobre reencarnação, você já deve ter deduzido, ainda sim irei concluir. Ele nunca deixou de acreditar nisso, viveu sua loucura sem levantar suspeitas, ele se relacionava com mulheres e em algum momento do relacionamento surtava, matava o filho e sua companheira e depois escondia os corpos. Provavelmente se alguém desse falta da mulher e da criança o maluco dava alguma desculpa do tipo: "ela fugiu levando o filho" ou "foi embora morar com a família" e na real, Sílvio morava na zona leste em um dos piores bairros que já fiz ronda, ninguém se importa com o que acontece lá, local perfeito para cometer um crime deste tipo.


ROGER

Que tenso, é disso que eu estava falando, por que nunca dividiu isso comigo?

GERALDO

É difícil falar de algo recente.

ROGER

Eu achava que esse caso era antigo.

GERALDO

Deixa eu continuar contando, chegou a parte que ninguém sabe.

ROGER

Certo, pode continuar.

GERALDO

Não sei como dizer isso sem parecer maluco…


Comecei a ver esse garoto em todo parte, sou cético, não acredito em espírito, por isso eu achava que era só minha cabeça pregando umas peças, sabe? Trauma pós acidente, afinal tirei a vida de uma criança, isso é o que acontece, a gente sente culpa e começa a ver coisas que não estão lá, bom, foi isso que meu psicólogo na época me falou. Comecei a ver o garoto com mais frequência, pra ser sincero em toda parte, então resolvi fingir que não o vi mais, não queria ganhar fama de maluco. Mas só aceitei que não era coisa da minha cabeça, definitivamente não era mesmo, sabe por que? Porque Cláudio desabafou comigo, me disse que assim como eu, ele estava vendo o garoto, e já fazia um tempo que isso vinha acontecendo, desde o dia do acidente. Quando ele acabou de acordar da batida, escutou um cochilo e um vento gelado na nuca, e naquela mesma hora viu o garoto na frente do carro ao lado da árvore que tínhamos batido. Ele parou a conversa apontou e disse que o maldito menino estava o observando em uma esquina a nossa frente, eu disse pra ele que acreditava no que havia me falado, porque eu estava vendo o garoto na mesma esquina nos encarando, e seria impossível os dois verem a mesma alucinação, era algo real.


Um ano se passou e nós nos acostumamos com a presença daquela figura fantasmagórica que nos perseguia, até que um dia ele sumiu, passamos uma semana sem ver o maldito, na segunda semana comemoramos, 14 dias sem ver o garotinho fantasma ou sei lá que diabos era aquele bostinha. Porém quando iríamos completar um mês sem vê-lo, tivemos a notícia que deixou o Cláudio desesperado. A esposa de Cláudio estava grávida, ele sabia que aquele bebê não seria seu filho, por isso insistiu para sua esposa fazer um aborto, ela por ser cristã e pro vida se negou, os dois brigaram e discutiram por diversas vezes, até que separaram. O Cláudio morou por um tempo comigo, o garoto nasceu e Cláudio no início não queria vê-lo, mas aparecia regularmente para ver sua esposa, não demorou muito eles fizeram as pazes começaram com a terapia de casal, Cláudio se convenceu que seu filho não era a reencarnação de um menino assassino, e voltou a morar com a esposa.


Foram 6 anos incríveis, tudo parecia ter voltado ao normal, mas um dia nós achamos um gato morto no quarto do garoto, o gato foi estripado, e desmembrado. Isso despertou um gatilho em nossas mentes, o que veio depois foi dois anos tensos, tudo que o garoto fazia parecia um sinal, a esposa de Cláudio começou a levar o garoto no psicólogo, mas nada adiantava, ele demonstrava um interesse enorme em matar pequenos animais, pássaros, gatos e às vezes cachorros, a vizinhança odiava aquele moleque. Uma vez ele amarrou um cachorro em um carro, o motorista distraído não percebeu, o que aconteceu depois você deve imaginar.


ROGER

Minha nossa.

GERALDO

Vivemos um pesadelo, sabíamos o que estava acontecendo, mas não podíamos contar a ninguém, seríamos internados com certeza...


Cláudio não dormia mais, foi afastado do trabalho depois de algumas condutas duvidosas ao visitar a cela de Sílvio para conseguir informações, ele não andava bem da cabeça mesmo.


SÍLVIO

Ele é um demônio, não importa quantas vezes você o mate, ele sempre volta.


Uma vez fui com ele na cela de Sílvio, essa é uma das coisas que eu gostaria de esquecer.


SÍLVIO

Obrigado por matá-lo para mim. Muito obrigado senhores, demorou, mas agora estou livre.


O garoto tinha feito 8 anos, e mesmo com todos os acontecimentos Fabiana deu uma festa para o pequeno monstrinho, uma semana depois ela e Cláudio foram degolados enquanto dormiam.


ROGER

Nossa, e o garoto?

GERALDO

Desapareceu, alguns assassinatos aconteceram naquela semana, mas não foram relacionados com a morte do Cláudio, mas eu sabia que havia uma ligação.

ROGER

Foi o garoto, não é?

GERALDO

Certeza que sim.

ROGER

E você o encontrou?

GERALDO

Não.


Geraldo olha para Roger enquanto relembra de quando estrangulou o garoto em sua casa.


GERALDO

Eu sabia que você viria atrás de mim, seu Bostinha! Vou te mandar para o inferno, e desta vez não vai conseguir voltar! Morre! Morre! Moooooorre!


Roger coloca a mão no ombro de Geraldo, aquela lembrança some de sua cabeça e seus pensamentos voltam para o presente.


ROGER

Acha que ele pode estar por aí?

GERALDO

É possível, mas prefiro não pensar nisso. Foi um lance horrível que aconteceu, agora é passado.

ROGER

Mas você disse que ainda o assombrava, que era algo recente.

GERALDO

Disse? Talvez porque eu me pegue pensando nisso às vezes, o tempo passa mas as lembranças ficam, e os pesadelos também.

ROGER

Menos mal, achei que ainda era assombrado pela alma do garoto.

GERALDO

Bom, digamos que sou assombrado pelo fato de carregar esse fardo sozinho.

ROGER

Não mais meu amigo.

GERALDO

Olha só, nosso turno finalmente acabou, nunca mais vou precisar ter uma conversa saudável com um jovem twitteiro.

ROGER

Engraçadão, toca para delegacia, antes que você leve um tiro, vai ser péssimo morrer no seu último dia de trabalho.


Na delegacia Roger se despede dos seus amigos e encontra sua namorada FABIANA na saída da delegacia, que corre, o abraça e dá um beijo.


ROGER

Oi amor, você sabe que não pode vir aqui.

FABIANA

Mas eu não aguentei esperar. Como foi seu dia?

ROGER

Normal...


Eles caminham em direção ao carro.


ROGER

...Hoje foi o último dia de trabalho do Geraldo, sempre achei ele meio babaca, mas hoje ele me contou uma história fantástica, não sei se foi pra me zoar, mas fui na onda dele, e meio que fingi que acreditei.


Ao entrar no carro eles avistam Geraldo andando em direção ao seu carro que estava estacionado na frente deles, Roger acena, liga o carro e passa do lado do ex-companheiro de trabalho.


ROGER

Geraldo, se precisar conversar com alguém me liga, vai ser bom te ver fora do trabalho.

GERALDO

Você tem uma mulher linda do seu lado e ainda dá em cima de mim, olha eu gosto de mulher.

FABIANA

Tudo bem eu não ligo.

ROGER

Amor não dá corda, olha esse tipo de brincadeira é bem homofóbica.

GERALDO

Por comentários assim que não vou ligar pra você.

ROGER

Ok, abraço amigo até mais, amor para de rir.

FABIANA

Velhos rabugentos são engraçados.

ROGER

Não quando fazem piadinhas preconceituosas.


Geraldo entra no carro, dá a partida e segue em direção de um local bem isolado, longe da cidade, uma casinha velha cercada de árvores no meio do nada, ao abrir a porta caminha até um porão, ele sai de lá arrastando um saco preto pesado, que leva para o quintal nos fundos da casa, onde tem uma cova e uma pá, ele tira um corpo de uma mulher aparentemente grávida de dentro do saco e a joga na cova, ele tampa o buraco e planta uma pequena muda de árvore em cima. Ao olhar para frente ele vê o fantasma do garoto o encarando atrás de outras árvores.


GERALDO

Não acredito que não deu certo de novo, maldito! Maldito! Maldito! Quantas vezes vou precisar fazer isso para me livrar de você?


Geraldo cai ajoelhado chorando ao lado da árvore que acabou de plantar.


GERALDO

Por que você não vai pro inferno? Mas que droga! Por que não me deixa em paz? Vai embora, por favor vá embora!


Fim.



Por: Mudo.


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