APOCALIPSE


APOCALIPSE

Uma multidão corre em minha direção. Gritos e histeria, pessoas desorientadas como um rebanho de ovelhas fugindo de seu predador. Por impulso, também começo a correr, mas não posso me tornar mais um no meio desta desordem. Mesmo assim, uma coisa é certa: preciso continuar correndo e sair daqui.

Viro em uma rua sem saída que, por algum motivo, está vazia. Vejo um portão aberto. Escuto tiros e mergulho para dentro do portão, por puro reflexo. Me tranco pelo lado de dentro. Quando me viro, um sujeito empunhando uma faca vem em minha direção e a deixa bem próxima ao meu pescoço.

HOMEM
Nunca pensei que chegaria o dia em que um playboy iria invadir minha casa. Qual é o seu vulgo?

Apenas o observo, analiso de cima a baixo, mas não respondo.

HOMEM
É mudo, porra?!

PABLO
Não.

Tudo que consegui responder, ainda observando-o.

HOMEM
Então fala, porra!

PABLO
Gustavo.

Claro que não daria meu nome verdadeiro.

HOMEM
Então, Gustavo, estou sem a chave para você sair. Bora entrar, então... Você vai ser meu convidado, por enquanto.

Eu o sigo para dentro da casa enquanto ele continua falando. Ainda o analiso. Acho que tem algo errado com esse sujeito.

HOMEM
Então, na verdade, essa casona não é minha...

Isso explica a falta da chave.

HOMEM
Acabei de entrar e a encontrei vazia, assim como você...

Ele espera mesmo que eu acredite nisso?! Mas vou seguir seu jogo, afinal, já estou aqui dentro com ele. Não posso me arriscar.

HOMEM
Lá fora está um caos, e eu tinha que me abrigar. Estou certo ou não estou?

Era para responder rápido, mas eu precisava pensar em algo melhor do que um simples sim.

HOMEM
Porra, Gustavo, é lógico que estou certo! Afinal, você teve a mesma ideia que eu. Já sei! Ainda está com medo de mim por conta da faca.

Ele guarda a faca, coloca os braços por cima do meu ombro. Não sei mesmo o que ele pretende com essa atitude, mas isso só me deixa mais desconfiado.

HOMEM
Esquece aquele lance da faca no pescoço que rolou ali fora. Agora a gente é "brother", está me entendendo? A gente pode não ser parecido, mas de certa forma pensamos da mesma maneira... Invadimos a mesma casa porque é tudo uma questão de sobrevivência...

Ele continua falando, e eu apenas vou concordando para não contrariá-lo. Ele vai até a cozinha. Lá, pega duas cervejas na geladeira e volta, sentando no sofá, como se a casa fosse dele há tempos. Pega o controle da TV e coloca no canal de notícias.

HOMEM
Vamos ver como as coisas andam lá fora, Gustavo.

Mesmo não sendo o meu nome, ele ficar me chamando com toda essa intimidade está me incomodando demais.

[NOTICIÁRIO] Foi completamente desconsiderada a hipótese de ataque terrorista. O exército foi chamado para tentar neutralizar e conter a ameaça. É pedido para que ninguém saia de casa. Economizem água e comida o quanto puderem...

Vejo as imagens do noticiário e não acredito: pessoas devorando umas às outras, criaturas gigantescas passando pela rua, e a pior parte é ver o exército recuando. Se não tivesse visto que era um noticiário, eu acharia que era cena de trailer de algum filme.

HOMEM
Gustavo, a gente está muito ferrado.

Nisso, eu concordo. A gente vai ter que economizar comida e água. Pelo jeito, não há previsão para tudo isso acabar.

HOMEM
Gustavo, estou preocupado com a nossa sobrevivência. Acho que temos que impor certos limites para as coisas não saírem de controle.

PABLO
Como assim?

HOMEM
Temos que ter regras para racionar comida, água... Aaaah! Também tem o lance da privacidade. Como tem um banheiro lá em cima e um aqui embaixo, vamos dividir a casa, afinal, a gente precisa ter o nosso espaço. Eu fico com a parte de cima e você com a de baixo. A cozinha é um lugar neutro, certo? O único lugar que a gente vai dividir.

Vou concordando com tudo mais uma vez, para evitar qualquer conflito.

HOMEM
Vamos fazer o seguinte: a fome vai apertar, mas nós vamos comer apenas uma vez ao dia; água não precisamos racionar, já que não foi cortada. Tudo bem pra você, Gusta? Eu posso te chamar de Gusta, né, já que agora somos vizinhos?

PABLO
Sim, tudo bem.

HOMEM
Ótimo, Gusta... Acho que vamos nos dar muito bem. Bom, eu vou subir pro meu pedaço da casa. Passar bem, Gustavo, quer dizer, Gusta.

Não sou idiota. Está claro que ele esconde algo lá em cima, mas vou esperar.

A escuridão logo vem e no meio da noite escuto algumas batidas que parecem vir lá de cima e um cheiro de assado que pode estar vindo da casa ao lado. Algumas horas se passam, eu finjo estar dormindo no sofá e ele fica no topo da escada me vigiando. Ele está preocupado com algo, mas ainda é muito cedo para eu tomar uma atitude.

No outro dia, ele desce somente para fazer aquela única refeição que concordamos. Dividimos tudo igualmente, mas ainda é muito suspeito.

HOMEM
Gustavo, você é um sujeito firmeza. Sabe, ontem fiquei de olho em você, quase não preguei o olho, mas você não tentou subir para minha parte da casa em nenhum momento... Quer saber, se ficarmos aqui mais tempo eu deixo você subir lá às vezes.

Escuto ele falar com a boca completamente cheia. Um porco tem mais educação que esse sujeitinho nojento, mas sigo o jogo dele. Sei que não confia em mim.

Escureceu novamente. Então dane-se, vou arriscar! Me deito um pouco, ele vai novamente pra escada e fica me vigiando, mas por bem menos tempo desta vez. Logo que sai da escada, me levanto rápido e pego a vassoura. Subo as escadas. Saio em um corredor que tem quatro portas, duas abertas e duas fechadas. Conforme me aproximo, escuto um leve choro.

Entro em um dos quartos que estão com a porta aberta. Lá me deparo com um freezer e um grill com restos de carne grelhada. Quando abro o freezer, tem um sujeito lá dentro, sem uma perna. O choque foi grande, mas preciso manter a calma. Escuto ele saindo de um dos quartos, eu me escondo atrás da porta. Ele entra, limpa a pequena mesa e sai, seguindo pelo corredor em direção às escadas. Agora não tem mais jeito. Ele vai descobrir que estou aqui.

Saio imediatamente, porém, antes de seguir atrás dele, ouço um choro vindo de um dos quartos, agora mais alto devido à porta aberta. A curiosidade fala mais alto, então entro e me surpreendo novamente. No interior, deparo-me com uma mulher nua, amarrada e amordaçada. Libero o pano de sua boca, e ela, aos prantos, me explica toda a situação.

MULHER
Ele degolou meu marido, me amarrou e me estuprou. Ele me falou de você... disse que vai te matar!

PABLO
Calma! Calma! Me diz o que ele te falou.

MULHER
Ele disse que precisa te manter vivo, porque não cabem dois corpos no freezer, e que quando você ficasse fraco por falta de comida e o freezer mais vazio, te mataria.

Ela volta a chorar e aponta para um prato com pedaços de ossos quebrados.

MULHER
Ele me obrigou a comer o meu marido!

Eu pedi para ela parar de chorar e fazer exatamente o que eu mandasse.

Ela continuou falando, como se houvesse alguém no quarto com ela. Eu deixei a porta entreaberta e me escondi no quarto da frente, com a vassoura. Quando ele voltou e escutou a voz dela, correu até o quarto com a faca.

HOMEM
Gustavo, seu filho da puta... Está morto!

Ele entra no quarto e vê a garota conversando sozinha. Saio do quarto onde estou e pelas suas costas, quebro a vassoura na cabeça do infeliz.

Pronto, agora vou amarrar esse miserável.

MULHER
Ei, por favor, me solta daqui logo!

Eu arrasto o corpo para fora do quarto. Ela continua pedindo para eu soltá-la. Então, volto para o quarto.

MULHER
Você não vai matar ele?!

Eu coloco a mordaça em sua boca e tranco a porta enquanto ela volta a chorar. Não sei porque ela achou que eu iria ajudá-la. Não prometi isso! E vou manter esse sujeito vivo até ter mais espaço no freezer. Seu plano me pareceu uma boa ideia, afinal, é tudo uma questão de sobrevivência.

Por mudo

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